O MENINO QUE ESPERAVA DEUS - por Adriana Shimabukuro

- Por Adriana Shimabukuro -

(Memórias de Um Pequeno Discípulo)

As estrelas não mais confortavam seu coração cheio de dúvidas e desilusões. Desde a sua infância dedicara-se ao celibato.
Ainda novo, fora praticamente abandonado às portas do templo, e passara toda sua infância dedicando-se aos estudos dos segredos do universo e desfrutando da única e quieta companhia de outros ascetas.
 
O MENINO QUE ESPERAVA DEUS

(Memórias de Um Pequeno Discípulo)

As estrelas não mais confortavam seu coração cheio de dúvidas e
desilusões. Desde a sua infância dedicara-se ao celibato.

Ainda novo, fora praticamente abandonado às portas do templo, e passara toda sua infância dedicando-se aos estudos dos segredos do universo e desfrutando da única e quieta companhia de outros ascetas.

Raspou sua cabeça, cortou sua relação com o mundo, abandonou suas poucas posses e qualquer ambição maior que não se relacionasse ao seu crescimento espiritual.

Mas as estrelas não mais o confortavam...
Nas últimas semanas, após a tradicional meditação noturna, o pequeno discípulo se dirigia à "Ponta do Céu".

No último andar do templo, que se escondia no topo da mais alta montanha da região, existia uma espécie de terraço, onde os monges costumavam meditar. Ele, sinceramente, achava que os outros cochilavam, mas Kurim, um monge mais velho encarregado de cuidar do pequeno estudante, garantia que eles estavam meditando. Para uma criança como ele, ficar por horas imóvel era consequência de um grande esforço... ou de um grande sono.

Neste mesmo terraço, após acabar de fazer suas obrigações diárias, podia-se ver o pequeno menino soltando papagaios ou deitado pensativo
olhando para o céu.

O céu, para ele, era o inatingível, o amplo, a casa do seu Deus.
Assim, ficar olhando para o céu e namorando as estrelas, o fazia completo e feliz.
Mas algo mudava... e ele não estava preparado para entender.

Os dias corriam e uma dúvida crescente aflorava em seu coração.
Indagações jamais criadas começavam a assombrar suas idéias e seus pensamentos.
"Para que tudo isso?"

"Onde está Deus?"
As meditações o incomodavam, os estudos começaram a se tornar cansativos, e o que era claro e indiscutível ,antes, transformara-se em razões para que ele discutisse e contradizesse qualquer um que o quisesse ajudar.

"Como vocês podem acreditar num livro, numa religião?"
"Como podem acreditar em palavras que alguém que nem conhecemos escreveu?"
Assim, de repente, ele cresceu.

Onde se encontrava a ingenuidade infantil, nascera a intolerância e a impaciência de um adolescente.
O Pequeno já não mais assistia às aulas diárias na grande sala e ignorava o grande livro.

Os vários dias, turbilhonados por suas confusões, obrigaram-no a tomar uma grande decisão: encontraria Deus, com suas próprias forças.
Subiu no "topo do céu", sentou, cruzou seus pés em posição de lótus e prometeu ficar ali... até Deus vir ao seu encontro.

Logo que os outros monges souberam da ousadia do menino, correram para o topo do céu e sentaram ao seu lado, num misto de desconfiança e apoio.
Passaram-se horas e o menino continuava quieto e imóvel. Alguns já se levantavam para preparar a refeição noturna do templo, enquanto outros mantinham-se quietos e meditativos.

O sino tocou, chamando a todos para a última aula do dia que sempre acontecia ao pôr-do-sol.
Duas sombras permaneceram imóveis: Kurim e o pequeno teimoso.
Kurim não era muito velho, nem o mais inteligente, mas era sim o mais paciente. Por esta razão, fora designado a cuidar do menino que os pais deixara na porta do templo há sete anos.

Por esta razão, fora o único que acompanhara o menino na primeira das outras noites que ele resolvera ficar imóvel, esperando Deus.

Era dia, e logo o terraço do templo se enchia dos incrédulos que não acreditavam que o pequeno desafiador permanecera imóvel a noite toda,
no seu arrojado intento de desafiar Deus.
Kurim ainda ficara até o meio-dia e resolvera deixar o pequeno só.

A cada dia que passava, os monges menos acreditavam no que viam.
O menino que clamava pela presença de Deus, não mais aceitava a pequena dose de água, que antes era fornecida insistentemente pelos
monges. Não se movia, não se levantava nem emitia um único som.

Assim, o pequeno desafiava Deus.
Enquanto Ele não se apresentasse ali, provando sua existência, ele não iria sair daquele terraço, nem daquela posição.
E Deus não surgia.

Passaram os dias, e já completava um mês.
Pelo vale, sua fama já era grande. "O menino que esperava Deus" despertava curiosidade no povoado e em outras escolas da região.

Passaram os meses, e o pequeno, castigado pela chuva e pelo sol, parecia não ter mais vida, imóvel em sua posição e decisão.
Mas Deus não surgiu.

Seu pequeno corpo foi retirado da ponta do céu, sem vida, mas tão firme quanto estava há cem dias atrás, quando decidira procurá-Lo.
Seu espírito subira aos céus, mas logo desceria por diversas vezes em corpos de cientistas e pesquisadores que se escondiam dentro da
Ciência para explicar as leis que regiam a vida no Universo.

A dureza e o ceticismo que acompanhavam a sua mente eram resquícios daquela dor que impregnara seu corpo de menino, naquele longínquo templo, há muitas vidas.

O pequeno ainda descobriria grandes leis da Natureza, ajudaria a humanidade, e por duas vezes, teria o seu nome marcado pela história como um grande homem, como um grande idealizador.
Mas as estrelas não mais o confortavam, e assim o grande cientista, antigo espírito do menino monge, partiu a estudar o que estava além do espaço, além da mente humana, além do Cosmos.

Mas Deus não surgiu, nem nas estrelas, nem no infinito, nem nas leis que ele descobrira e que mudariam o futuro da humanidade.

Assim, ele chorou. Por vidas esperava por Ele, por vidas O procurou, primeiro na fé e na firmeza da decisão, e depois na Ciência e nos livros.
Assim, ele chorou e assim Deus surgiu, no meio de suas lágrimas.

Seu corpo, agora leve e pequeno, subira aos céus, fundira-se com as estrelas e explodira em milhões de pedaços que dançavam pelo infinito do espaço.
Seu mesmo corpo, impregnara-se nos sorrisos das crianças, nas folhas das árvores que caíam pacientemente e no reflexo do rosto da menina que se banhava no lago.

Deus estava lá, e sempre esteve, em cada coisa, em cada estrela e em cada ser humano.
Deus estava lá, sempre e sempre, esperando o pequeno menino...

* * *

Existe uma linha tênue que separa o fanático fervoroso que, em sua fé, procura Deus do cético cientista que procura leis que regem o amor do ser humano. É nesta linha tênue que Deus, há muito tempo, vive equilibrando-se e esperando nossas almas.
Deus está na paz do equilíbrio.
 

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