PASSAPORTE
- por Frank -
Jamais achei que meu passaporte valesse muita coisa. Viajante, sempre tive que lutar para conquistar vistos, permissões e autorizações para ir aonde eu sempre quis.
Confesso que sonhava com passaporte europeu ou americano, ou qualquer passaporte que não exigisse burocracia, que pulasse fila, que evitasse a cara feia e desconfiada de agentes e fiscais da imigração, que sempre olham desconfiados para nordestinos vagamundos como eu, esses brasileirinhos que insistem em conhecer o planeta e suas maravilhosas curvas e contos. Contudo, mesmo não abrindo facilmente as portas dos portos e as janelas que escondem novos horizontes, meu “verdinho” sempre me levou aos quatro cantos do mundo; da Paraíba à Paris, de Londres ao Egito, da Índia ao Líbano... Líbano...
Abro o jornal e vejo a imagem da mãe que chora sangue, segurando a filha. Elas foram impedidas de entrar no navio, na caravana dos resgatados, no avião de socorro, por não portarem passaporte estrangeiro.
Nesse instante, o meu coração se abre e sintonizo algo, além do espaço:
“Sou essa mulher, e de meus olhos escorrem lágrimas de sangue. Seguro minha filha sob o véu negro que cobre o meu corpo, como se fosse uma tatuagem que representa o próprio Islã. Não penso em Israel, nem muito menos no Hizbollah; não penso no Líbano destruído ou no número de feridos; só quero salvar minha filha, escapar com vida, sair dali.
Desesperada, tento embarcar com um grupo de brasileiros, mas não consigo, não tenho dupla cidadania. Nem o português que arranho, afinal boa parte da minha família vive em São Paulo, consegue me ajudar. Se ao menos tivesse cidadania estrangeira nem precisaria ser americana ou européia, nem precisaria ser brasileira, qualquer passaporte ajudaria. Qualquer documento nos levaria além das bordas do lugar que fora o meu lar e que agora virara prisão. Qualquer passaporte nos levaria para além das bordas, para lugares que não são bombardeados, que não explodem inocentes, que não exigem a vida de quinhentos em nome de dois. Qualquer passaporte me salvaria, qualquer passaporte salvaria a minha filha, qualquer passaporte que não o meu.”
Volto a mim e não consigo esquecer a foto no jornal, não consigo esquecer os seus rostos. Elas são pedacinhos de mim, pedacinhos que choram em algum lugar, enquanto sob suas cabeças, caem as bombas de ignorância.
Jamais imaginei que o passaporte brasileiro valesse tanto. Jamais imaginei que meu passaporte valesse vida.
São Paulo, 25 de Julho 2006.
- Nota de Wagner Borges:
Frank é o pseudônimo do nosso amigo Francisco de Oliveira, participante do grupo de estudos do IPPB e da lista Voadores. Depois de vários anos morando em Londres, ele voltou a residir em São Paulo, em fevereiro de 2005.
Ele escreve textos muito inspirados e nos autorizou a postagem desses escritos.
Há diversos textos dele postados em sua coluna da revista on line de nosso site e em nossa seção de textos periódicos, em meio aos diversos textos já enviados anteriormente. www.ippb.org.br – Outros textos podem ser acessados diretamente em seu blog na Internet: http://cronicasdofrank.blogspot.com
Jamais achei que meu passaporte valesse muita coisa. Viajante, sempre tive que lutar para conquistar vistos, permissões e autorizações para ir aonde eu sempre quis.
Confesso que sonhava com passaporte europeu ou americano, ou qualquer passaporte que não exigisse burocracia, que pulasse fila, que evitasse a cara feia e desconfiada de agentes e fiscais da imigração, que sempre olham desconfiados para nordestinos vagamundos como eu, esses brasileirinhos que insistem em conhecer o planeta e suas maravilhosas curvas e contos. Contudo, mesmo não abrindo facilmente as portas dos portos e as janelas que escondem novos horizontes, meu “verdinho” sempre me levou aos quatro cantos do mundo; da Paraíba à Paris, de Londres ao Egito, da Índia ao Líbano... Líbano...
Abro o jornal e vejo a imagem da mãe que chora sangue, segurando a filha. Elas foram impedidas de entrar no navio, na caravana dos resgatados, no avião de socorro, por não portarem passaporte estrangeiro.
Nesse instante, o meu coração se abre e sintonizo algo, além do espaço:
“Sou essa mulher, e de meus olhos escorrem lágrimas de sangue. Seguro minha filha sob o véu negro que cobre o meu corpo, como se fosse uma tatuagem que representa o próprio Islã. Não penso em Israel, nem muito menos no Hizbollah; não penso no Líbano destruído ou no número de feridos; só quero salvar minha filha, escapar com vida, sair dali.
Desesperada, tento embarcar com um grupo de brasileiros, mas não consigo, não tenho dupla cidadania. Nem o português que arranho, afinal boa parte da minha família vive em São Paulo, consegue me ajudar. Se ao menos tivesse cidadania estrangeira nem precisaria ser americana ou européia, nem precisaria ser brasileira, qualquer passaporte ajudaria. Qualquer documento nos levaria além das bordas do lugar que fora o meu lar e que agora virara prisão. Qualquer passaporte nos levaria para além das bordas, para lugares que não são bombardeados, que não explodem inocentes, que não exigem a vida de quinhentos em nome de dois. Qualquer passaporte me salvaria, qualquer passaporte salvaria a minha filha, qualquer passaporte que não o meu.”
Volto a mim e não consigo esquecer a foto no jornal, não consigo esquecer os seus rostos. Elas são pedacinhos de mim, pedacinhos que choram em algum lugar, enquanto sob suas cabeças, caem as bombas de ignorância.
Jamais imaginei que o passaporte brasileiro valesse tanto. Jamais imaginei que meu passaporte valesse vida.
São Paulo, 25 de Julho 2006.
- Nota de Wagner Borges:
Frank é o pseudônimo do nosso amigo Francisco de Oliveira, participante do grupo de estudos do IPPB e da lista Voadores. Depois de vários anos morando em Londres, ele voltou a residir em São Paulo, em fevereiro de 2005.
Ele escreve textos muito inspirados e nos autorizou a postagem desses escritos.
Há diversos textos dele postados em sua coluna da revista on line de nosso site e em nossa seção de textos periódicos, em meio aos diversos textos já enviados anteriormente. www.ippb.org.br – Outros textos podem ser acessados diretamente em seu blog na Internet: http://cronicasdofrank.blogspot.com