FILME: ADVOGADO DO DIABO - por Ayrton Medici
- Por Ayrton Medici -
TRAGICOMÉDIA CÓSMICA
Sob que máscaras espreita-se o mal? A grande ameaça à harmonia e ao equilíbrio da vida, aquilo que as grandes religiões se habituaram a batizar de Demônio ou Satanás pode estar bem mais perto do que, à primeira vista, podemos supor.
Em “O ADVOGADO DO DIABO” (Devil’s Advocate, EUA, 1997 ) essa entidade maligna atende pelo nome de John Milton, advogado de extraordinário sucesso, magistralmente interpretado por Al Pacino.
Revelações e surpresas acumulam-se generosamente nesse filme intrigante, que expõem as fragilidades da condição humana diante das oscilações entre seu lado luminoso e sombrio e, ao mesmo tempo, sua fortaleza advinda da responsabilidade e da grandeza do homem em assumir as conseqüências de seus atos.
Entre confrontos cosmogônicos e rituais satânicos; embates entre as motivações do ódio e da fúria em choque com a clareza da compaixão e do discernimento, essa obra prima da cinematografia moderna revela dimensão tragicômica da existência humana em seu caminho evolutivo na Terra.
TRAGICOMÉDIA CÓSMICA
Sob que máscaras espreita-se o mal? A grande ameaça à harmonia e ao equilíbrio da vida, aquilo que as grandes religiões se habituaram a batizar de Demônio ou Satanás pode estar bem mais perto do que, à primeira vista, podemos supor.
Em “O ADVOGADO DO DIABO” (Devil’s Advocate, EUA, 1997 ) essa entidade maligna atende pelo nome de John Milton, advogado de extraordinário sucesso, magistralmente interpretado por Al Pacino.
Revelações e surpresas acumulam-se generosamente nesse filme intrigante, que expõem as fragilidades da condição humana diante das oscilações entre seu lado luminoso e sombrio e, ao mesmo tempo, sua fortaleza advinda da responsabilidade e da grandeza do homem em assumir as conseqüências de seus atos.
Entre confrontos cosmogônicos e rituais satânicos; embates entre as motivações do ódio e da fúria em choque com a clareza da compaixão e do discernimento, essa obra prima da cinematografia moderna revela dimensão tragicômica da existência humana em seu caminho evolutivo na Terra.
AS LIÇÕES DO DIABO:
“Vaidade é definitivamente meu pecado favorito”
Depois de vencer todos os casos que foi chamado a defender em sua pequena cidade natal, o jovem advogado Kevin Lomax (Keanu Reeves) é convidado para trabalhar em Nova York por um salário milionário apenas para escolher um júri para um único tribunal.
Bem sucedido na escolha (apesar de todas as evidências contra o réu, o júri escolhido por Kevin delibera em favor do acusado em apenas 38 min!), o protagonista desse filme que é uma verdadeira aula de cinema é contratado em definitivo pela firma de John Milton e Associados por um salário ainda maior do que o inicialmente combinado além de receber uma série de regalias para si e para sua esposa e um estonteante apartamento de alto padrão em frente ao Central Park.
Para sua surpresa, seu primeiro caso como advogado de defesa em Nova York parece se um caso menor ligado a questões referentes à saúde pública. Desconfiado pela discrepância de seu vultuoso salário e a aparente insignificância desse seu novo trabalho, Kevin questiona com a sua assistente, antiga funcionária da empresa, a situação em que foi colocado: “... Isso é um teste, não é?” Ao que ela imediatamente responde: “- Não é assim com tudo?”
Essa parece ser uma das questões chaves desse filme: os grandes “Testes” que a vida nos apresenta e a forma como reagimos a eles, que decisões tomamos e, principalmente, quais são as reais motivações para essas decisões. Para onde elas nos levam? Que caminhos elas constroem para nossas vidas?
Por mais que isso pareça difícil de aceitar, sempre somos os únicos responsáveis pelas situações contra as quais nos debatemos em nossas vidas pelas decisões e atitudes que tomamos.
Kevin teve a intuição de que alguma coisa parecia estar “errada”... O trabalho para ele proposto parecia fácil demais para um ganho tão fenomenal em tão pouco tempo. Mas... para que “ouvir” a própria intuição se a “tentação” do consumismo e do ganho fácil soa tão forte e eloqüente? Para que pensar em ética e moral se, como tem mostrado ser a prática de muitos “bruxos new age”, os fins parecem sempre justificar os meios?
É assim, que caso a caso, o personagem maravilhosamente interpretado
por Keanu Reeves, vai se concentrando no seu ganho e na avidez de “subir na vida” a qualquer custo permanecendo cego e surdo a tudo que está a sua volta, inclusive a decadência emocional e psicológica de sua própria esposa que, totalmente abandonada, comenta com uma de suas fúteis novas amigas novaiorquinas: “- Temos todo esse dinheiro e não é nada. Parece um teste!”
Novamente a questão do teste diário que é a própria essência de nossas vidas é realçada. Em meio a um consumismo absurdo e desenfreado recheado de futilidades e banalidades, Marie Ann, mulher de Kevin, literalmente enlouquece e seu marido só irá tentar acolhê-la quando suas escolhas já provocaram danos irreparáveis e ela encontra-se à beira do suicídio alimentado pelo assédio constante de “obsessores” físicos e extra-físicos representados por figuras demoníacas e assustadoras.
O todo poderoso John Milton (em mais uma interpretação inigualável de Al Pacino), o dono da empresa e responsável direto pela contratação de Kevin em um de seus vários eloqüentes discursos apresentados no filme explicita com clareza instigante e perturbadora a situação que vivemos em nossa tecnológica e bélica era “pós-yuppie”: “...Você afia o apetite humano a ponto de ele partir átomos com seu desejo. Você constrói egos do tamanho de catedrais e conecta o mundo com fibras óticas a cada impulso do ego. Atiça os sonhos mais tolos com as fantasias chamadas dólar e ouro até que cada ser humano aspire a imperador e se torne seu próprio deus. E o que vem depois disso?”
Mais adiante, o próprio John Milton nos dá a resposta: “... Quem está de olho no planeta? O ar se adensa , a água apodrece. Até o mel das abelhas tem gosto metálico de radioatividade! E continua cada vez mais rápido. Se compra futuro, se vende futuro, mas não há futuro!”
Só após inúmeras vitórias alcançadas em tribunais e júris forjadas pelas mais diversas falcatruas e posturas totalmente anti-éticas e o lancinante suicídio de sua esposa internada em hospital para doentes mentais é que Kevin resolve finalmente confrontar seu chefe e mentor, o que na verdade irá se transformar em um encontro consigo próprio e com a edificação de seu ego monumental que orgulhava-se soberbamente sem qualquer questionamento que “nunca tinha perdido uma causa!”
Esse confronto é, na verdade, uma grande metáfora do papel que a figura mitológica do diabo representa em nossas vidas: o contato direto com nosso lado sombrio, a exacerbação de nosso ego e a profunda ligação de nossas consciências com a densidade da matéria e seus tentadores aprisionamentos.
O demônio John Milton (o nome do personagem é referência direta ao escritor inglês, autor de “O paraíso Perdido”), incita-nos a entrarmos em contato com nossa sombra e nos apresenta a segunda questão chave levantada pelo filme que talvez seja a grande mola mestra de nossa existência nesse universo: o livre-arbítrio.
Novamente o irônico e sarcástico Milton, discursa para Kevin (e, obviamente, para todos nós) respondendo aos seus questionamentos dos porquês da sua “escolha” como seu pupilo: “...Você tem razão, Kevin, eu estava observando. Mas não sou titereiro. Não faço as coisas acontecer. Não é assim que funciona... É como as asas da borboleta, se você as toca, não saem do chão...Só preparo o palco, você manipula as cordas...”
Em resposta, Kevin tenta matar Milton indagando sobre o que ele teria feito com sua mulher. Não é assim que fazemos sempre? Buscamos os culpados “lá fora” para esconder que as escolhas sempre foram nossas. O culpado é o sistema, a crise, o governo, a impunidade, a violência...
Porém, nosso diabo escarnecedor não dá tréguas e coloca as verdades na cara de Kevin: “...Está me culpando pela morte de Marie Ann? Tomara que esteja brincando. Você podia tê-la salvado. Ela só precisava de amor... e você não tinha tempo... você quis trocá-la por coisa melhor desde que chegou aqui... não é que você não gostasse de sua esposa, você simplesmente estava muito envolvido com outra pessoa: você mesmo...”
Mais adiante, defronte de um estupefato Kevin que percebe seu lado sombra monstruosamente ganhar forma diante de seus olhos cheios de culpa e revolta, Milton continua instigando: “... E no metrô, o que eu lhe disse? Talvez seja sua vez de perder! Ao que Kevin rebateu aos berros: “Perder? Eu nunca perco! Eu ganho! Sou um advogado!”
A Milton resta apenas concluir: “...Caso encerrado!” E, ainda mais sarcástico emendar com uma das mais célebres frases do filme: “... Vaidade é definitivamente meu pecado favorito!”
Nesses momentos de confronto com nossas motivações mais íntimas e inconfessáveis temos a perniciosa tendência de seguir para o outro extremo e, de forma piegas e desequilibrada afundarmo-nos na sensação de culpa pelo que falamos, fizemos ou deixamos de fazer. É o que acontece com Kevin. Para aliviá-lo, o demoníaco Milton consola-o: “... Não seja tão duro consigo mesmo... a culpa é saco cheio de tijolos... tudo o que você tem a fazer é largá-lo...”
Nesse instante fica claro o que o desequilíbrio do confronto direto com nossa sombra pode causar: passamos da total ausência de senso crítico sobre nós mesmos a uma sensação exagerada de culpa para, no instante seguinte, nos desculparmos completamente sem a menor ética ou cerimônia.
Duas faces de um mesmo desequilíbrio: o excesso de mortificação e culpa imobilizante de um lado e a irresponsável auto-indulgência tão aclamada nos meios “bruxísticos” e “new age” onde tudo vale, tudo pode...
Voltando ao nosso espetacular filme, percebemos que ele atinge seu clímax novamente impulsionado pelo discurso inflamado de nossa sombra diabólica representada por Al Pacino:
“...Para quem você está carregando esses tijolos? Deus?... Deixe-me dar algumas informações sobre ele. Deus gosta de olhar, é um gozador. Pense: ele dá instintos ao homem. Ele dá esse dom extraordinário e aí o que ele faz? Eu juro que, para sua própria diversão, para sua comédia cósmica particular, ele cria regras em oposição a isso. É a maior piada de todas: Olhe, mas não toque. Toque,mas não prove. Prove, mas não engula... Enquanto você pula de um pé para o outro, o que é que ele faz? Ele fica mijando de tanto rir! Ele é um sacana, um sádico! É um patrão ausente. Adorar isso? Nunca!”.
É importante ressaltar aqui que o discurso de Milton reporta-se a figura do Deus Bíblico, principalmente aquele Deus retratado no chamado “Antigo Testamento” e que tem sua imagem vingativa e repressora reforçada por todas as grandes religiões ocidentais. Um Deus criado à imagem e semelhança do... homem com todos suas contradições. Cabe lembrar também que na obra literária do escritor John Milton “O paraíso Perdido”, o diabo é o anjo caído que traz luz às trevas e questiona os poderes desse Deus exclusivista e punitivo.
É por esse prisma que devemos compreender a instigante resposta que Milton dá a Kevin quando esse lhe pergunta “É melhor reinar no inferno do que servir no céu, não é?” : “Por que não? estou aqui com meu nariz no chão desde que tudo começou! Nutri cada sensação que o homem foi inspirado a ter. Me preocupei com seus desejos e nunca o julguei. Por que nunca o rejeitei, apesar de suas imperfeições. Eu sou um fã do homem. Sou um humanista, talvez o último. Quem poderia negar que o século 20 foi todinho meu?”
Guardadas as limitações comerciais do cinema americano e as licenças poéticas da obra ficcional, temos aqui a importante imagem-espelho da figura do Diabo como Lúcifer, Prometeu ou ainda o próprio “anjo caído”, aquele que abandonado por seu Deus, opta por ficar com os homens e quer partilhar a luz divina com a humanidade sem julgamentos, mas ressaltando as qualidades da matéria como uma possibilidade inequívoca de caminho evolutivo e consciencial. Não o caminho desequilibrado da culpa e do castigo, mas sim aquele que abarca a cosmo-ética, o amor e o perdão.
Mas, em “O Advogado do Diabo”, apesar da redenção de Kevin no confronto com sua sombra, o que mais fica evidenciado é a inexorabilidade das “tentações satânicas” em nossas vidas.
Após a utilização do livre-arbítrio em sua forma mais radical através do suicídio como forma de recusar-se a participar do ritual diabólico proposto por seu mentor e “pai-demônio”, Kevin faz uma regressão no tempo e no espaço e volta para o primeiro julgamento mostrado no filme em sua cidade natal, Gainsville. Aliviado por perceber que tudo o que acontecerá com ele teria sido apenas uma monstruosa premonição, nosso protagonista em um acesso de ética e consciência, decide abandonar o caso no meio do julgamento correndo o risco de ter seu registro de advogado cassado e ser expulso da Ordem dos Advogados de sua região. Nesse momento glorioso e redentor que parece ser o grande “final feliz” do filme, o diabo “reencarna” na figura de um jornalista ganancioso que acompanha o retumbante início da carreira de Kevin e lhe propõe reabilitá-lo em troca da exclusividade dos “direitos autorais” de sua história. Kevin exita, mas acaba novamente “caindo na tentação” da glorificação de seu próprio ego. O diabo regozija-se, esfregando as mãos. Temos que admitir: não é á toa que a vaidade é mesmo seu “pecado favorito”...
O ADVOGADO DO DIABO - FICHA TÉCNICA COMENTADA
Título Original: The Devil´s Advocate (USA, 1997)
Roteiro: Jonathan Lemkin baseado no Romance “The Devil´s Advocate” de Andrew Neiderman
Direção:
Taylor Hackford
Trabalhos de Taylor Hackford mais conhecidos no Brasil:
“Prova de Vida” (Proof of Life - 2000) com Russel Crowe e Meg Ryan
“O Sol da Meia Noite” (White Nights - 1985) ) com Mikhail Baryshnikov
“A Força do Destino” (An Officer and a Gentleman -1982)
com Richard Gere e Debra Winger
Elenco:
Al Pacino (John Milton)
Trabalhos mais conhecidos no Brasil:
“Insônia” (Insomnia - 2002), “O Informante” (Insider, The - 1999), “Perfume de Mulher” (Scent of a Woman -1992), “O Poderoso Chefão III” (Godfather: Part III, The -1990), “Scarface” (Scarface -1983), “O Poderoso Chefão II” (Godfather: Part II, The -1974), “O Poderoso Chefão” (Godfather, The -1972)
Keanu Reeves (Kevin Lomax)
Trabalhos mais conhecidos no Brasil:
“Doce Novembro” (Sweet November - 2001), “Matrix” (Matrix, The - 1999), “Andando nas Nuvens” (Walk in the Clouds, A -1995), “Velocidade Máxima” (Speed -1994), “O Pequeno Buda” (Little Buddha -1993), “Drácula de Bram Stoker" (Dracula -1992), “Ligações Perigosas” (Dangerous Liaisons - 1988), Charlize Theron (Mary Ann Lomax),
Trabalhos mais conhecidos no Brasil:
“Doce Novembro” (Sweet November - 2001), “Regras da Vida” (Cider House Rules, The - 1999), “The Wonders” (That Thing You Do! - 1996).
“Vaidade é definitivamente meu pecado favorito”
Depois de vencer todos os casos que foi chamado a defender em sua pequena cidade natal, o jovem advogado Kevin Lomax (Keanu Reeves) é convidado para trabalhar em Nova York por um salário milionário apenas para escolher um júri para um único tribunal.
Bem sucedido na escolha (apesar de todas as evidências contra o réu, o júri escolhido por Kevin delibera em favor do acusado em apenas 38 min!), o protagonista desse filme que é uma verdadeira aula de cinema é contratado em definitivo pela firma de John Milton e Associados por um salário ainda maior do que o inicialmente combinado além de receber uma série de regalias para si e para sua esposa e um estonteante apartamento de alto padrão em frente ao Central Park.
Para sua surpresa, seu primeiro caso como advogado de defesa em Nova York parece se um caso menor ligado a questões referentes à saúde pública. Desconfiado pela discrepância de seu vultuoso salário e a aparente insignificância desse seu novo trabalho, Kevin questiona com a sua assistente, antiga funcionária da empresa, a situação em que foi colocado: “... Isso é um teste, não é?” Ao que ela imediatamente responde: “- Não é assim com tudo?”
Essa parece ser uma das questões chaves desse filme: os grandes “Testes” que a vida nos apresenta e a forma como reagimos a eles, que decisões tomamos e, principalmente, quais são as reais motivações para essas decisões. Para onde elas nos levam? Que caminhos elas constroem para nossas vidas?
Por mais que isso pareça difícil de aceitar, sempre somos os únicos responsáveis pelas situações contra as quais nos debatemos em nossas vidas pelas decisões e atitudes que tomamos.
Kevin teve a intuição de que alguma coisa parecia estar “errada”... O trabalho para ele proposto parecia fácil demais para um ganho tão fenomenal em tão pouco tempo. Mas... para que “ouvir” a própria intuição se a “tentação” do consumismo e do ganho fácil soa tão forte e eloqüente? Para que pensar em ética e moral se, como tem mostrado ser a prática de muitos “bruxos new age”, os fins parecem sempre justificar os meios?
É assim, que caso a caso, o personagem maravilhosamente interpretado
por Keanu Reeves, vai se concentrando no seu ganho e na avidez de “subir na vida” a qualquer custo permanecendo cego e surdo a tudo que está a sua volta, inclusive a decadência emocional e psicológica de sua própria esposa que, totalmente abandonada, comenta com uma de suas fúteis novas amigas novaiorquinas: “- Temos todo esse dinheiro e não é nada. Parece um teste!”
Novamente a questão do teste diário que é a própria essência de nossas vidas é realçada. Em meio a um consumismo absurdo e desenfreado recheado de futilidades e banalidades, Marie Ann, mulher de Kevin, literalmente enlouquece e seu marido só irá tentar acolhê-la quando suas escolhas já provocaram danos irreparáveis e ela encontra-se à beira do suicídio alimentado pelo assédio constante de “obsessores” físicos e extra-físicos representados por figuras demoníacas e assustadoras.
O todo poderoso John Milton (em mais uma interpretação inigualável de Al Pacino), o dono da empresa e responsável direto pela contratação de Kevin em um de seus vários eloqüentes discursos apresentados no filme explicita com clareza instigante e perturbadora a situação que vivemos em nossa tecnológica e bélica era “pós-yuppie”: “...Você afia o apetite humano a ponto de ele partir átomos com seu desejo. Você constrói egos do tamanho de catedrais e conecta o mundo com fibras óticas a cada impulso do ego. Atiça os sonhos mais tolos com as fantasias chamadas dólar e ouro até que cada ser humano aspire a imperador e se torne seu próprio deus. E o que vem depois disso?”
Mais adiante, o próprio John Milton nos dá a resposta: “... Quem está de olho no planeta? O ar se adensa , a água apodrece. Até o mel das abelhas tem gosto metálico de radioatividade! E continua cada vez mais rápido. Se compra futuro, se vende futuro, mas não há futuro!”
Só após inúmeras vitórias alcançadas em tribunais e júris forjadas pelas mais diversas falcatruas e posturas totalmente anti-éticas e o lancinante suicídio de sua esposa internada em hospital para doentes mentais é que Kevin resolve finalmente confrontar seu chefe e mentor, o que na verdade irá se transformar em um encontro consigo próprio e com a edificação de seu ego monumental que orgulhava-se soberbamente sem qualquer questionamento que “nunca tinha perdido uma causa!”
Esse confronto é, na verdade, uma grande metáfora do papel que a figura mitológica do diabo representa em nossas vidas: o contato direto com nosso lado sombrio, a exacerbação de nosso ego e a profunda ligação de nossas consciências com a densidade da matéria e seus tentadores aprisionamentos.
O demônio John Milton (o nome do personagem é referência direta ao escritor inglês, autor de “O paraíso Perdido”), incita-nos a entrarmos em contato com nossa sombra e nos apresenta a segunda questão chave levantada pelo filme que talvez seja a grande mola mestra de nossa existência nesse universo: o livre-arbítrio.
Novamente o irônico e sarcástico Milton, discursa para Kevin (e, obviamente, para todos nós) respondendo aos seus questionamentos dos porquês da sua “escolha” como seu pupilo: “...Você tem razão, Kevin, eu estava observando. Mas não sou titereiro. Não faço as coisas acontecer. Não é assim que funciona... É como as asas da borboleta, se você as toca, não saem do chão...Só preparo o palco, você manipula as cordas...”
Em resposta, Kevin tenta matar Milton indagando sobre o que ele teria feito com sua mulher. Não é assim que fazemos sempre? Buscamos os culpados “lá fora” para esconder que as escolhas sempre foram nossas. O culpado é o sistema, a crise, o governo, a impunidade, a violência...
Porém, nosso diabo escarnecedor não dá tréguas e coloca as verdades na cara de Kevin: “...Está me culpando pela morte de Marie Ann? Tomara que esteja brincando. Você podia tê-la salvado. Ela só precisava de amor... e você não tinha tempo... você quis trocá-la por coisa melhor desde que chegou aqui... não é que você não gostasse de sua esposa, você simplesmente estava muito envolvido com outra pessoa: você mesmo...”
Mais adiante, defronte de um estupefato Kevin que percebe seu lado sombra monstruosamente ganhar forma diante de seus olhos cheios de culpa e revolta, Milton continua instigando: “... E no metrô, o que eu lhe disse? Talvez seja sua vez de perder! Ao que Kevin rebateu aos berros: “Perder? Eu nunca perco! Eu ganho! Sou um advogado!”
A Milton resta apenas concluir: “...Caso encerrado!” E, ainda mais sarcástico emendar com uma das mais célebres frases do filme: “... Vaidade é definitivamente meu pecado favorito!”
Nesses momentos de confronto com nossas motivações mais íntimas e inconfessáveis temos a perniciosa tendência de seguir para o outro extremo e, de forma piegas e desequilibrada afundarmo-nos na sensação de culpa pelo que falamos, fizemos ou deixamos de fazer. É o que acontece com Kevin. Para aliviá-lo, o demoníaco Milton consola-o: “... Não seja tão duro consigo mesmo... a culpa é saco cheio de tijolos... tudo o que você tem a fazer é largá-lo...”
Nesse instante fica claro o que o desequilíbrio do confronto direto com nossa sombra pode causar: passamos da total ausência de senso crítico sobre nós mesmos a uma sensação exagerada de culpa para, no instante seguinte, nos desculparmos completamente sem a menor ética ou cerimônia.
Duas faces de um mesmo desequilíbrio: o excesso de mortificação e culpa imobilizante de um lado e a irresponsável auto-indulgência tão aclamada nos meios “bruxísticos” e “new age” onde tudo vale, tudo pode...
Voltando ao nosso espetacular filme, percebemos que ele atinge seu clímax novamente impulsionado pelo discurso inflamado de nossa sombra diabólica representada por Al Pacino:
“...Para quem você está carregando esses tijolos? Deus?... Deixe-me dar algumas informações sobre ele. Deus gosta de olhar, é um gozador. Pense: ele dá instintos ao homem. Ele dá esse dom extraordinário e aí o que ele faz? Eu juro que, para sua própria diversão, para sua comédia cósmica particular, ele cria regras em oposição a isso. É a maior piada de todas: Olhe, mas não toque. Toque,mas não prove. Prove, mas não engula... Enquanto você pula de um pé para o outro, o que é que ele faz? Ele fica mijando de tanto rir! Ele é um sacana, um sádico! É um patrão ausente. Adorar isso? Nunca!”.
É importante ressaltar aqui que o discurso de Milton reporta-se a figura do Deus Bíblico, principalmente aquele Deus retratado no chamado “Antigo Testamento” e que tem sua imagem vingativa e repressora reforçada por todas as grandes religiões ocidentais. Um Deus criado à imagem e semelhança do... homem com todos suas contradições. Cabe lembrar também que na obra literária do escritor John Milton “O paraíso Perdido”, o diabo é o anjo caído que traz luz às trevas e questiona os poderes desse Deus exclusivista e punitivo.
É por esse prisma que devemos compreender a instigante resposta que Milton dá a Kevin quando esse lhe pergunta “É melhor reinar no inferno do que servir no céu, não é?” : “Por que não? estou aqui com meu nariz no chão desde que tudo começou! Nutri cada sensação que o homem foi inspirado a ter. Me preocupei com seus desejos e nunca o julguei. Por que nunca o rejeitei, apesar de suas imperfeições. Eu sou um fã do homem. Sou um humanista, talvez o último. Quem poderia negar que o século 20 foi todinho meu?”
Guardadas as limitações comerciais do cinema americano e as licenças poéticas da obra ficcional, temos aqui a importante imagem-espelho da figura do Diabo como Lúcifer, Prometeu ou ainda o próprio “anjo caído”, aquele que abandonado por seu Deus, opta por ficar com os homens e quer partilhar a luz divina com a humanidade sem julgamentos, mas ressaltando as qualidades da matéria como uma possibilidade inequívoca de caminho evolutivo e consciencial. Não o caminho desequilibrado da culpa e do castigo, mas sim aquele que abarca a cosmo-ética, o amor e o perdão.
Mas, em “O Advogado do Diabo”, apesar da redenção de Kevin no confronto com sua sombra, o que mais fica evidenciado é a inexorabilidade das “tentações satânicas” em nossas vidas.
Após a utilização do livre-arbítrio em sua forma mais radical através do suicídio como forma de recusar-se a participar do ritual diabólico proposto por seu mentor e “pai-demônio”, Kevin faz uma regressão no tempo e no espaço e volta para o primeiro julgamento mostrado no filme em sua cidade natal, Gainsville. Aliviado por perceber que tudo o que acontecerá com ele teria sido apenas uma monstruosa premonição, nosso protagonista em um acesso de ética e consciência, decide abandonar o caso no meio do julgamento correndo o risco de ter seu registro de advogado cassado e ser expulso da Ordem dos Advogados de sua região. Nesse momento glorioso e redentor que parece ser o grande “final feliz” do filme, o diabo “reencarna” na figura de um jornalista ganancioso que acompanha o retumbante início da carreira de Kevin e lhe propõe reabilitá-lo em troca da exclusividade dos “direitos autorais” de sua história. Kevin exita, mas acaba novamente “caindo na tentação” da glorificação de seu próprio ego. O diabo regozija-se, esfregando as mãos. Temos que admitir: não é á toa que a vaidade é mesmo seu “pecado favorito”...
O ADVOGADO DO DIABO - FICHA TÉCNICA COMENTADA
Título Original: The Devil´s Advocate (USA, 1997)
Roteiro: Jonathan Lemkin baseado no Romance “The Devil´s Advocate” de Andrew Neiderman
Direção:
Taylor Hackford
Trabalhos de Taylor Hackford mais conhecidos no Brasil:
“Prova de Vida” (Proof of Life - 2000) com Russel Crowe e Meg Ryan
“O Sol da Meia Noite” (White Nights - 1985) ) com Mikhail Baryshnikov
“A Força do Destino” (An Officer and a Gentleman -1982)
com Richard Gere e Debra Winger
Elenco:
Al Pacino (John Milton)
Trabalhos mais conhecidos no Brasil:
“Insônia” (Insomnia - 2002), “O Informante” (Insider, The - 1999), “Perfume de Mulher” (Scent of a Woman -1992), “O Poderoso Chefão III” (Godfather: Part III, The -1990), “Scarface” (Scarface -1983), “O Poderoso Chefão II” (Godfather: Part II, The -1974), “O Poderoso Chefão” (Godfather, The -1972)
Keanu Reeves (Kevin Lomax)
Trabalhos mais conhecidos no Brasil:
“Doce Novembro” (Sweet November - 2001), “Matrix” (Matrix, The - 1999), “Andando nas Nuvens” (Walk in the Clouds, A -1995), “Velocidade Máxima” (Speed -1994), “O Pequeno Buda” (Little Buddha -1993), “Drácula de Bram Stoker" (Dracula -1992), “Ligações Perigosas” (Dangerous Liaisons - 1988), Charlize Theron (Mary Ann Lomax),
Trabalhos mais conhecidos no Brasil:
“Doce Novembro” (Sweet November - 2001), “Regras da Vida” (Cider House Rules, The - 1999), “The Wonders” (That Thing You Do! - 1996).